176. Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo.
«Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da
realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o
risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar».[140]
Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a dimensão
social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão não for
devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido
autêntico e integral da missão evangelizadora.
177. O querigma possui um
conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a
vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo
do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a
caridade.
178. Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano
implica descobrir que «assim lhe confere uma dignidade infinita».[141]
Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa carne humana significa que cada
pessoa humana foi elevada até ao próprio coração de Deus. Confessar que Jesus
deu o seu sangue por nós impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do amor sem
limites que enobrece todo o ser humano. A sua redenção tem um sentido social,
porque «Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as
relações sociais entre os homens».[142]
Confessar que o Espírito Santo atua em todos implica reconhecer que Ele procura
permear toda a situação humana e todos os vínculos sociais: «O Espírito Santo
possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a
desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis».[143]
A evangelização procura colaborar também com esta ação libertadora do Espírito.
O próprio mistério da Trindade nos recorda que somos criados à imagem desta
comunhão divina, pelo que não podemos realizar-nos nem salvar-nos sozinhos. A
partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre
evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente exprimir e
desenvolver em toda a ação evangelizadora. A aceitação do primeiro anúncio, que
convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos
comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas acções uma primeira e
fundamental reacção: desejar, procurar e ter a peito o bem dos outros.
179. Este laço indissolúvel entre a recepção do anúncio salvífico
e um efectivo amor fraterno exprime-se nalguns textos da Escritura, que convém
considerar e meditar atentamente para tirar deles todas as consequências. É uma
mensagem a que frequentemente nos habituamos e repetimos quase mecanicamente,
mas sem nos assegurarmos de que tenha real incidência na nossa vida e nas
nossas comunidades. Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva
a perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da
fraternidade e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o
prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt
25, 40). O que fizermos aos outros, tem uma dimensão transcendente: «Com a
medida com que medirdes, assim sereis medidos» (Mt 7, 2); e corresponde
à misericórdia divina para connosco: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é
misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis
condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...). A medida
que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38). Nestes
textos, exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o irmão»,
como um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e
como o sinal mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento
espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por isso mesmo,
«também o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e
expressão irrenunciável da sua própria essência».[144]
Assim como a Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente
dessa natureza a caridade efectiva para com o próximo, a compaixão que
compreende, assiste e promove.
180. Ao lermos
as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa
relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria
ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns
indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma «caridade por receita»,
uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A
proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a
Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a
vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade
para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a
provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o
Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt
6, 33). O projecto de Jesus é instaurar o Reino de seu Pai; por isso, pede aos
seus discípulos: «Proclamai que o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).
181. O Reino, que se
antecipa e cresce entre nós, abrange tudo, como nos recorda aquele
princípio de discernimento que Paulo VI propunha a propósito do verdadeiro
desenvolvimento: «Todos os homens e o homem todo».[145]
Sabemos que «a evangelização não seria completa, se ela não tomasse em
consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e
a vida concreta, pessoal e social, dos homens».[146]
É o critério da universalidade, próprio da dinâmica do Evangelho, dado que o
Pai quer que todos os homens se salvem; e o seu plano de salvação consiste em
«submeter tudo a Cristo, reunindo n’Ele o que há no céu e na terra» (Ef
1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura»
(Mc 16, 15), porque toda «a criação se encontra em expectativa ansiosa,
aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação
significa também todos os aspectos da vida humana, de tal modo que «a missão do
anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato de
caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os
ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer
estranho».[147]
A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre
história.
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes
estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objecto de
discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem pretender entrar em
detalhes – para que os grandes princípios sociais não fiquem meras
generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas consequências
práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas complexas situações
hodiernas».[148]
Os Pastores, acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de
exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado
que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser
humano. Já não se pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado
e serve apenas para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a
felicidade dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à
plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1
Tm 6, 17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a
conversão cristã exige rever «especialmente tudo o que diz respeito à ordem
social e consecução do bem comum».[149]
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade
secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos
preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar
sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem ousaria
encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata
Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é
cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o
mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa
passagem por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e
amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os
seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a
nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça».[150]
Todos os cristãos,
incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum mundo
melhor. É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é
primariamente positivo e construtivo, orienta uma acção transformadora e, neste
sentido, não deixa de ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de
Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social
das demais Igrejas e Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na
prática».[151]
184. Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões
sociais que afectam o mundo actual, algumas das quais já comentei no segundo
capítulo. Este não é um documento social e, para nos ajudar a reflectir sobre
estes vários temas, temos um instrumento muito apropriado no Compêndio
da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente
recomendo. Além disso, nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio da
interpretação da realidade social ou da apresentação de soluções para os
problemas contemporâneos. Posso repetir aqui o que indicava, com grande
lucidez, Paulo VI: «Perante situações, assim tão diversificadas, torna-se-nos
difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como o propor uma solução que
tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa
missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem, com objectividade, a
situação própria do seu país».[152]
185. Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes
questões que me parecem fundamentais neste momento da história.
Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que irão determinar
o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão social dos pobres; e a segunda,
a questão da paz e do diálogo social.
186. Deriva da nossa fé em
Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados, a
preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.
187. Cada cristão e cada
comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação
e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto
supõe estar docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo.
Basta percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer ouvir o
clamor dos pobres: «Eu bem
vi a opressão do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos
seus inspectores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de os
libertar (...). E agora, vai; Eu te envio...» (Ex 3, 7-8.10). E
Ele mostra-Se solícito com as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram,
então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar
surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre,
coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projecto, porque esse pobre
«clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt
15, 9). E a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi directamente
sobre a nossa relação com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma,
Aquele que o criou ouvirá a sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a
antiga pergunta: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com
necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode
permanecer nele?» (1 Jo 3, 17). Lembremos também com quanta convicção o
Apóstolo São Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o
salário que não pagastes, aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está
a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do
universo» (5, 4).
188. A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor
deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se
trata de uma missão reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho
da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e
deseja responder com todas as suas forças».[153]
Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes
vós mesmos de comer» (Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para
resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral
dos pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as
misérias muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por
vezes, até mal interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do
que alguns actos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova
mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos
sobre a apropriação dos bens por parte de alguns.
189. A solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a
função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades
anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para
cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a
solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe
corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem
carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas
possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e
atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se
tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos
povos mais pobres da terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos
direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos».[154]
Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação
para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos
mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso
recordar-se sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a
humanidade, e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos
ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos
dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns
dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao
serviço dos outros».[155]
Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar
e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio
país. Precisamos crescer numa solidariedade que «permita a todos os povos
tornarem-se artífices do seu destino»,[156]
tal como «cada homem é chamado a desenvolver-se».[157]
191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em
todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se
expressaram os Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e
esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das
populações das periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem
pão, sem saúde – lesadas em seus direitos”. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e
conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe
alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e
da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício».[158]
192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se
fala apenas de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas
«prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos».[159]
Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho,
porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano
exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso
adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum.
193. Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em
nós, quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento
alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a
misericórdia, para que ressoem vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho
proclama: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt
5, 7). O Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia para com os outros
permite-nos sair triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei como pessoas
que hão-de ser julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não pratica a
misericórdia, será julgado sem misericórdia. “Mas a misericórdia não teme o
julgamento» (2, 12-13). Neste texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que
tinha de mais rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um
especial valor salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e
as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes; talvez isto consiga
prolongar a tua prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a
literatura sapiencial fala da esmola como exercício concreto da misericórdia
para com os necessitados: «A esmola livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb
12, 9). E de forma ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o
fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese
no Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor
cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou
profundamente a mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercido uma
resistência profética como alternativa cultural face ao individualismo
hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em perigo de
incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos
fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado;
assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia,
alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e na qual
podemos extinguir o incêndio».[160]
194. É uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente
que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da
Igreja sobre estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido
exortativo, mas antes ajudar a assumi-los com coragem e ardor. Para quê
complicar o que é tão simples? As elaborações conceptuais hão-de favorecer o contato
com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale,
sobretudo para as exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao
amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para
com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro, com as
suas palavras e com os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos
preocupemos só com não cair em erros doutrinais, mas também com ser fiéis a
este caminho luminoso de vida e sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos defensores
da “ortodoxia” a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade
culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos
que mantêm estas situações».[161]
195. Quando
São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava a
correr ou tinha corrido em vão» (Gal 2, 2), o critério-chave de
autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gal
2, 10). Este critério, importante para que as comunidades paulinas não
se deixassem arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma
grande atualidade no contexto atual em que tende a desenvolver-se um novo
paganismo individualista.
A própria beleza do Evangelho nem sempre a conseguimos manifestar
adequadamente, mas há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos últimos,
por aqueles que a sociedade descarta e lança fora.
196. Às vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos,
entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de consumo e de distração
que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de alienação que nos afeta
a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização
social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a
constituição dessa solidariedade inter-humana».[162]
197. No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres,
tanto que até Ele mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8, 9).
Todo o caminho da nossa
redenção está assinalado pelos pobres. Esta salvação veio a nós, através do
«sim» duma jovem humilde, duma pequena povoação perdida na periferia dum grande
império. O Salvador nasceu num presépio, entre animais, como sucedia com os
filhos dos mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com dois
pombinhos, a oferta de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc
2, 24; Lv 5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou
com suas mãos para ganhar o pão.
Quando começou a anunciar o
Reino, seguiam-No multidões de deserdados, pondo assim em evidência o que Ele
mesmo dissera: «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu para
anunciar a Boa Nova aos pobres» (Lc 4, 18).
A quantos sentiam o peso do
sofrimento, acabrunhados pela pobreza, assegurou que Deus os tinha no âmago do
seu coração: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» (Lc
6, 20); e com eles Se identificou: «Tive fome e destes-Me de comer», ensinando
que a misericórdia para com eles é a chave do Céu (cf. Mt 25, 34-40).
198. Para a Igreja, a opção
pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política
ou filosófica. Deus «manifesta a sua misericórdia antes de mais» a eles.[163] Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos
os cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos que estão em Cristo
Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção
pelos pobres, entendida como uma «forma especial de primado na prática da
caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja».[164]
Como ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica naquele
Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza».[165]
Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos
ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores
conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por
eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas
vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a
descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas,
mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a
misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em ações ou
em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento
não é um excesso de ativismo, mas primariamente uma atenção prestada ao
outro «considerando-o como um só consigo mesmo».[166]
Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a
partir dela, desejo procurar efetivamente o seu bem. Isto implica apreciar o
pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua cultura, com a
sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo,
permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é
belo, independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é
agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça».[167]
Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor»,[168]
e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de
qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou
políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos
acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará
possível que «os pobres se
sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este estilo, a
maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino?»[169] Sem a
opção preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a
primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se
naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente nos
apresenta».[170]
200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja
Católica, desejo afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que
sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres
possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar
de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos
Sacramentos e a proposta dum caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A
opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa
solicitude religiosa privilegiada e prioritária.
201. Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque
as suas opções de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências.
Esta é uma desculpa frequente nos ambientes académicos, empresariais ou
profissionais, e até mesmo eclesiais. Embora se possa dizer, em geral, que a
vocação e a missão próprias dos fiéis leigos é a transformação das diversas
realidades terrenas para que toda a actividade humana seja transformada pelo
Evangelho,[171]
ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça
social: «A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o
zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são
exigidos a todos».[172] Temo que
também estas palavras sejam objeto apenas de alguns comentários, sem verdadeira
incidência prática. Apesar disso, tenho confiança na abertura e nas
boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis, comunitariamente, novos
caminhos para acolher esta renovada proposta.